A MACONHA VIRA PAUTA NOVAMENTE

Um livro com pesadas advertências ao consumo de maconha tornou-se, recentemente, uma das obras mais vendidas nos Estados Unidos e eriçou as comunidades médicas e acadêmicas especializadas na investigação das drogas. Ex-repórter do New York Times, o autor Alex Berenson inflamou um debate até tão considerado superado em razão da popularização do uso medicinal e recreativo da Cannabis. “A maconha causa paranoia e psicose. Paranoia e psicose causam violência. Há evidências esmagadoras que ligam transtornos psicóticos à violência”, escreveu ele em Conte a seus filhos: a verdade sobre a maconha, doenças mentais e violência, publicado em janeiro passado.

Berenson opina que não se deveria mais dourar a pílula sobre o uso da maconha, apregoando a importância de sua função medicinal, realçando seu papel relaxante ou enumerando as possibilidades de negócios decorrentes desse novo filão. “Talvez eu seja muito cínico, mas acredito que a maioria das pessoas fuma maconha pela mesma razão que elas bebem álcool ou usam qualquer outra droga: porque gostam de ficar chapadas.”

Polêmica

Ele ainda argumenta que os defensores do uso de maconha ignoram evidências científicas de que o composto ativo da droga, o THC (tetra-hidrocanabinol, principal ingrediente ativo da Cannabis), pode precipitar o início da esquizofrenia e provocar atos de violência em indivíduos que experimentam “surto” psicótico.

A partir de um artigo de Malcolm Gladwell para a revista The New Yorker, a tese controversa de Berenson se espalhou, e o livro logo entrou para as listas dos mais vendidos no país. Reportagens e ensaios em outras publicações, como The AtlanticThe NationRolling StoneVox e National Review, enfileiraram vozes de apoio — poucas — e de críticas — grande parte delas — ao enfoque de Berenson e, por tabela, de Gladwell.

O ápice das vozes contrárias foi a carta aberta assinada por 75 acadêmicos e profissionais da área médica americana, que classificaram o livro como exemplo de “alarmismo” projetado para despertar o medo do público “com base em uma leitura errada da ciência”. Os especialistas negam que haja evidências científicas comprovadas da vinculação entre consumo de maconha e violência como pregou Berenson. Se fosse assim, a Holanda seria o país mais sanguinário do mundo.

Mas a polêmica havia sido instaurada. Berenson conseguiu levar o assunto aos holofotes mais uma vez. Havia alguns consensos importantes que foram reafirmados pelos especialistas. Um deles, de que, sim, fuma-se muita maconha por aí. Outro, de que o uso excessivo pode, excepcionalmente, ter consequências graves. Existem casos documentados em que usuários foram levados a praticar atos violentos depois do consumo. A experiência da maioria, porém, é relativamente benigna e previsível; ainda que a de outros possa não ser. Ninguém contesta também que o uso ocasional de maconha por pessoas com mais de 25 anos é geralmente seguro. Não há evidências científicas de que a maconha possa ser “mais perigosa do que acreditamos”.

Pesquisa

A concordância unânime sobre a maconha é que é preciso estudá-la mais. Isso não aconteceu por décadas porque se construíram, ao longo dos anos, verdades absolutas sobre ela: de que era um vício perigoso e a porta de entrada para drogas mais pesadas. “Não há estudos conclusivos que embasem ser o melhor caminho a descriminalização ou legalização. Onde tais ações ocorreram, entretanto, não houve aumento do consumo da droga”.

Quando o assunto é jurídico, não há estudos conclusivos que permitam dizer que o caminho a ser percorrido deve ser a legalização ou a descriminalização, por exemplo. Se a maconha for usada por indicação médica, como remédio, deve passar pelo mesmo processo de testes clínicos que outras drogas: com investigações sobre efeitos colaterais e tentativas de discernir dosagens e mecanismos adequados.

“Maconha é droga. Toda droga tem risco. As mudanças das políticas não estão fingindo que esses riscos não existem. Eles existem e precisam ser abordados. Apenas muitos de nós consideramos que esses riscos poderão ser mais bem abordados se houver uma regulação estatal”, afirmou o psiquiatra e professor da Unicamp Luís Fernando Tófoli. “Descriminalização, regulação, legalização não é sinônimo de liberação.”

Ao longo da última década, novas pesquisas têm surgido sobre o tema. Um estudo australiano mostrou que “usar maconha aos 15 anos aumenta em até três vezes o risco de alucinações aos 21 anos”. Uma pesquisa suíça apontou que o uso regular de Cannabis por “adolescentes aumentou o risco de ideias paranoicas” em “2,6 vezes”. Já uma pesquisa inglesa concluiu que “o uso de Cannabis por adolescentes triplicou o risco de sintomas psicóticos”. (Em nenhum dos três países é permitido o uso recreativo da droga.) “Há fortes evidências de que o uso da Cannabis no começo da vida aumenta o risco de desenvolvimento da esquizofrenia mais tarde. No entanto, também há evidências de que o uso da Cannabis por indivíduos com esquizofrenia está associada a uma melhor performance em testes cognitivos. É uma relação complexa”, afirmou a doutora Daniele Piomelli, diretora do UCI Center for the Study of Cannabis, uma das responsáveis pela pesquisa The health effects of Cannabis and cannabinoids .

Questão neurológica

Segundo o neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Sidarta Ribeiro, é difícil precisar uma relação de causalidade entre o uso de Cannabis e doenças como a esquizofrenia. “Se pessoas que têm esquizofrenia têm maior prevalência de uso de Cannabis, vou concluir que a Cannabis causou esquizofrenia ou que a esquizofrenia causou o uso da Cannabis? Na maior parte dos casos, você não tem como resolver isso. A interpretação é altamente ideológica”, afirmou.

Para Ribeiro, a regulamentação da Cannabis seria a melhor maneira de mitigar seus efeitos negativos.

Um dos motivos para isso é permitir a produção da erva com doses equilibradas de seus dois principais canabinoides — o THC e o CBD. O professor da UFRN vê nas políticas de combate ao tabagismo — que levou à diminuição de 36% do número de fumantes entre 2011 e 2017, de acordo com o Ministério da Saúde — um modelo que poderia funcionar em relação à Cannabis.

Ele citou como bons exemplos o fim das propagandas que glamorizavam o fumo, substituídas por propagandas negativas, e a restrição dos locais para fumantes. “O proibicionismo é um grande ‘libera geral’. A pessoa tem acesso a tudo. Qualquer pessoa, não tem de ter idade mínima, nada. Mas ela tem acesso a uma coisa extremamente incerta. Ela não sabe o que é aquilo. Ninguém sabe. Nem o cara que está vendendo sabe o que é aquilo direito.”

Consumo

Cannabis foi a droga mais consumida no mundo em 2016, tendo sido utilizada por 192 milhões de pessoas “ao menos uma vez ao longo do último ano”, de acordo com o Relatório mundial sobre drogas 2018 da ONU. “O número global de usuários de Cannabis continua a aumentar e aparenta ter se expandido em aproximadamente 16% na última década até 2016, refletindo assim um aumento similar na população global”, afirma o relatório.

No Brasil, embora a maconha seja, hoje, a droga ilícita mais consumida, o aumento no consumo não pode ser mensurado na série de três levantamentos da Fiocruz sobre o uso de drogas. Os dados de 2001 e 2005 mostram que, respectivamente, 6,9% e 8,8% dos entrevistados usaram maconha ao menos uma vez na vida. O número de dependentes nas duas pesquisas era de, respectivamente, 1% e 1,2%. Na pesquisa finalizada em 2016 — e divulgada parcialmente por meio de um vazamento para a imprensa —, 7,7% dos entrevistados admitiram ter usado maconha, haxixe ou skank uma vez na vida. Não foram disponibilizados os dados relativos à dependência em 2016.

Na carta aberta contra o livro de Berenson, pesquisadores e clínicos escreveram: “Ponderados os danos da proibição da maconha, incluindo a criminalização de milhões de pessoas, esmagadoramente negros e pardos, a legalização é a abordagem menos prejudicial”.

Essa discussão relevante e crucial entrará em debate no Brasil em 5 de junho, quando o Supremo Tribunal Federal decidirá se o porte da maconha deve ou não ser criminalizado no Brasil.

No Brasil

Na atual composição da Corte, a tendência é que não seja mais considerado crime no Brasil portar maconha para uso pessoal. A mesma ideia pode ser estendida a outras drogas. A grande contradição da Lei de Drogas é não criminalizar o uso, mas considerar crime o porte para consumo próprio. O julgamento é de uma ação que questiona o artigo 28 dessa lei. Pela norma, quem adquire, guarda e traz consigo droga para consumo pessoal fica sujeito a uma série de penalidades — nenhuma delas envolve prisão. O usuário pode receber advertência, ser obrigado a prestar serviços à comunidade ou atender a curso educativo. As medidas também se aplicam para quem semeia ou cultiva plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância capaz de causar dependência física ou psíquica.

Se houver recusa ao cumprimento da pena, o juiz pode aplicar multa ao usuário. Ou determinar que ele seja atendido, se quiser, com tratamento especializado gratuito. O artigo também estabelece que, para determinar se a droga era para uso pessoal ou não, o juiz deverá observar vários critérios, como a quantidade da substância apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, além da conduta e dos antecedentes do agente. Ou seja: impera a subjetividade.

Para tentar resolver a equação, o ministro Luís Roberto Barroso, que votou em 2015, sugeriu que o próprio STF fixasse uma quantidade para diferenciar uso pessoal de tráfico. Para ele, quem fosse pego com 25 gramas de maconha deveria ser classificado como usuário — e, portanto, não poderia ser preso. Também defendeu que o usuário pudesse cultivar, no máximo, seis plantas fêmeas de maconha. As quantidades foram inspiradas na legislação de Portugal e do Uruguai. A regra valeria até o Congresso Nacional legislar sobre o assunto.

Gilmar Mendes votou pela liberação do porte para qualquer tipo de droga para uso pessoal. Edson Fachin também foi pela descriminalização, mas se ateve à maconha. Nenhum dos dois endossou a sugestão de Barroso sobre quantidades. A falta de parâmetro objetivo na lei para diferir tráfico preocupa boa parte dos ministros do STF. Embora a tendência seja considerar o artigo 28 inconstitucional, a solução apresentada por Barroso não deve conquistar maioria no plenário. Ministros consideram ousado para um tribunal fixar essa regra. A atribuição seria do Congresso Nacional.

Com a proximidade do julgamento do Supremo, é pouco provável que os parlamentares avancem na discussão, que está adormecida há anos. “Não há dúvida de que, qualquer que seja a decisão, o Congresso Nacional sempre é soberano para estabelecer políticas públicas nessa área”, resumiu o presidente do STF, Dias Toffoli. Ricardo Lewandowski concorda. “O Congresso tem condições de analisar a questão de forma mais ampla do que o Judiciário, e certamente deverá — se vier a legislar — levar em consideração dados relativos à segurança pública e à saúde da coletividade”, completou.

Celso de Mello explicou que o papel do STF nesse caso é restrito. “O STF não legisla. Ele vai interpretar situações jurídicas. Pode, por exemplo, entender que o artigo 28 da Lei de Drogas ( o que prevê penas para o porte para consumo pessoal ) é inconstitucional. Essa é a tese sustentada no processo.”

Votação

Mesmo sem um placar claro, o julgamento do dia 5 não será unânime. Ao contrário, promete discussões acirradas entre ministros em plenário. Alexandre de Moraes já deu demonstrações públicas de que não concorda com Barroso sobre o tema. Em 5 de fevereiro, Moraes disse que, para combater o tráfico de drogas, é preciso prender os líderes e também as chamadas “mulas” — ou seja, pessoas encarregadas do transporte de drogas. A posição foi defendida em sessão da Primeira Turma do STF, no julgamento do habeas corpus de um réu flagrado com meio quilo de maconha. Por 3 votos a 2, o preso continuou atrás das grades.

“Para combater o tráfico de drogas, o correto é prender os cabeças. Não existe general sem exército. Se não existisse mula, não existiria general”, disse Moraes. Barroso fez o contraponto. Ponderou que o réu era apenas uma “mula” do tráfico, preso com uma quantidade mínima de maconha. “São visões diferentes, é uma política pública que não funciona”, disse Barroso, ao rebater o voto de Moraes. “Ele foi preso neste momento com maconha, poderia ter sido preso em outro momento com cocaína”, retrucou Moraes.

Fonte: Revista Época

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