Conversamos com especialistas para esclarecer as principais dúvidas em relação ao projeto de lei que regulamenta o homeschooling
Imagine uma sociedade em que cada família pudesse decidir o que acha melhor para si? Afinal, eu tenho o direito de escolher o que considero mais apropriado para meu filho e ensiná-lo, segundo meus valores e crenças, certo? Agora imagine se essa sociedade fosse desigual e segregada, sem muita oportunidade de se conviver com as diferenças. Como seria?
Toda sociedade de alguma maneira precisa de coesão para existir, senão seríamos apenas indivíduos. A Constituição Federal, por exemplo, é uma das bases para uma nação coexistir: é ela que organiza e sistematiza um conjunto de preceitos, normas, prioridades e preferências que a sociedade acordou. É um pacto social constitutivo de uma nação.
A partir dessa premissa, questionamos: será que a família pode ocupar o lugar de instituição total e escolher formato de ensino e por quais espaços a criança deve circular? É possível garantir a aprendizagem de todos, defendendo um ensino inclusivo e de qualidade, sobretudo dos mais vulneráveis, na educação domiciliar?
O que pensam as crianças?
Antes de começar qualquer discussão entre nós, adultos, precisamos ouvir crianças. O que elas acham de aprender em casa em vez de ir à escola? Com a palavra:
Liz, 9 anos
“Eu acho que ia ser um pouco triste, porque eu não ia conseguir ver meus amigos e meu professor, e eu amo eles!”
Clara, 7 anos
“Eu acho que aprendo mais na escola, e seria muuuuito chato [aprender em casa]”
Gracyane, 8 anos
“Eu não acho legal, eu sentiria muita falta dos meus amigos, da minha professora. Eu prefiro ir pra escola.”
Maria Clara, 7 anos
“Chato, porque a mamãe não tem paciência e a professora tem. Aí a mamãe teria de ter mais paciência como a professora tem”
Pelos relatos, as crianças revelam a falta que faz a presença dos amigos, dos professores, do ambiente de trocas e convívio entre pessoas diversas. A escola é o espaço onde a criança se desenvolve como sujeito e amplia o seu universo de relações para além do âmbito familiar. É também um lugar de construção do sentimento de pertencimento, de percepção das diferenças, do desenvolvimento de empatia, do pulsar das emoções na relação com o outro e na existência em comunidade.
Os principais ‘porquês’ da educação domiciliar
A partir de dúvidas dos nossos leitores sobre a educação domiciliar, conversamos com especialistas das áreas de pedagogia e psicologia para nos ajudar neste debate: Raquel Franzim, pedagoga e diretora de educação do Instituto Alana, Luciana Alves, pedagoga e diretora de escola, e a psicanalista e pesquisadora na área da infância Ilana Katz, que também é colunista do Lunetas.
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Os pais têm direito à escolha pela educação domiciliar ou escolar para seus filhos?
Raquel Franzim – “Não se trata de uma discussão de liberdades: o direito à matrícula é do estudante, e não da família, previsto na Constituição Federal. Vale lembrar que todo direito envolve deveres: se o direito é da criança de estar na escola regular, há também um dever, e este dever é partilhado pela família, Estado e sociedade.”
Ilana Katz – “A escola é historicamente construída como serviço de defesa dos direitos da criança e do adolescente. Esses direitos envolvem ações de segurança alimentar, fomento à cidadania, ampliação da participação e inclusão social, promoção de saúde mental – esta última radicalmente ligada à ideia da vida em sociedade, do encontro com as diferentes formas e modos de vida que a escola oferece. Com que ideia de família entramos nesse debate? O que a gente pensa sobre alcance, limites, poder e força da família para considerar que a escolarização das crianças deve ser por ela conduzida? Além disso, quando falamos ‘meu filho’, o que significa? A criança, desde o instante em que nasce, é um sujeito de direitos. O ‘meu’ que se enuncia em ‘meu filho’ representa o adulto de referência no cuidado com esse sujeito, e não do filho como propriedade.”
“Uma escolha individual jamais pode se sobrepor a um direito social”
Luciana Alves – “A educação já foi um projeto individual não no sentido de indivíduo, mas no sentido de família. Houve um tempo em que o pensamento religioso ou mítico dominava o modo como a gente explicava o mundo. Quando este pensamento já não era mais suficiente, surgiram os pensamentos filosófico e científico, e houve a necessidade de ir além do que as famílias sabiam ensinar, para que os sujeitos pudessem compreender o mundo a partir destas novas bases. Aprovar um projeto de ensino domiciliar seria regredir aos tempos da Idade Média.”
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Cabe exclusivamente à escola a função da educação?
Raquel Franzim – “A escola e a família são ambientes diferentes de aprendizagem, e isso independe dos pais serem bem intencionados, que é o caso da maioria dos pais que já adotam o ensino domiciliar como prática. A escola é produção de ciência, é conhecimento – físico, cognitivo, socioemocional, social, cultural, natural. As famílias têm grande papel na formação das crianças como cidadãos e na transmissão de valores morais, partilhando isso com as escolas, com a sociedade, com o Estado. Mas é diferente educar, ensinar e aprender a produzir conhecimento científico. É como ficar doente: todos nós podemos nos cuidar em casa se adoecemos, mas isso não substitui o conhecimento dos profissionais da saúde ou não substitui a ida a um serviço de saúde. Ambos são complementares.”
Segundo o artigo 25 da Constituição Federal, a educação é um dever do Estado, mas também da família e da sociedade. Defender o ensino escolar não significa afastar os pais da escola, pelo contrário, é preciso que ambas as partes dialoguem sempre, justamente para lutar por uma educação de qualidade. Sabemos que a educação integral não acontece só dentro da escola, mas na família, na rua, no convívio com o outro – afinal, como diz o provérbio africano, “para educar uma criança é preciso uma aldeia inteira”.
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O ensino domiciliar é capaz de promover um espaço integral de diversidade?
Luciana Alves – “Uma sociedade não existe se cada pessoa pensa e age a partir de princípios próprios. Nesse sentido, a escola é a instituição principal onde as crianças consolidam não só valores e novos conhecimentos, mas comportamentos esperados socialmente. Ao voltar a um modelo de educação familiar, mesmo em uma família com base sólida de conhecimento científico, perdemos algo indispensável: a convivência com a diferença.”
“Se eu fico circunscrito à minha família e ao meu círculo de convivência, não tenho contato com outras pessoas que pensam e vivem diferente de mim. Assim, acredito que a minha família é o modelo e a régua do mundo inteiro”
“Além disso, há uma discussão sobre as escolas não espelharem os anseios das famílias. Na verdade, as escolas nunca espelharam os anseios das famílias. Este é um discurso que está sendo construído com bases ideológicas e, em alguns casos, religiosas, limitando o acesso da criança a conteúdo sobre gênero, educação sexual, diversidade racial. Isso não só é um projeto retrógrado, em termos históricos, mas em termos sociais.”
Ilana Katz – “Nosso melhor possível é com os outros: com as diferenças pequenas, com as dificuldades maiores. Sem o outro, não há pertencimento. Uma comunidade se tece pelo interesse comum, e não entre iguais. A escola é um espaço privilegiado de alargamento do mundo e de construção de uma coletividade. Portanto, a discussão sobre permitir que a criança ou o jovem frequentem ou não um espaço público não cabe aqui. Não se trata apenas do que você supostamente poderia fazer com o seu filho, mas do impacto que isso tem no tipo de sociedade que queremos. Outorgar esse poder à família reduz a experiência da criança ao seu controle. É, de alguma maneira, tomar a família como uma instituição total, autorizá-la a circunscrever o espaço de circulação da criança.”
“A primeira experiência de socialização não pode ser a última. A aprendizagem é uma experiência que se faz com os outros, a gente aprende a viver no exercício complexo da vida”
“As crianças e jovens são atores indispensáveis para a transformação do mundo na direção de uma sociedade mais justa, e a escola é o espaço privilegiado para isso.”
Entendemos que o movimento de pais que adotam o ensino domiciliar não compreende isolar os filhos em casa: há um esforço para promover trocas e convívio social. No entanto, uma das questões mais importantes para o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças que frequentam ambientes coletivos é poderem, ao mesmo tempo, aprender sobre si mesmas: quem são, o que as identifica perante o outro, como é conviver com as diferenças. É dever da escola promover um ambiente cada vez mais rico em experiências, afeto, oportunidades e vivências para valorizar a infância.
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Como podemos garantir educação de qualidade se as escolas têm vários problemas de infraestrutura e métodos de ensino?
Raquel Franzim – “Há um universo grande das famílias educadoras que é contra esta escola que está aí, em que o projeto, o currículo, as metodologias, a avaliação não dialogam com as singularidades dos estudantes e, muitas vezes, os limitam e os excluem da incrível jornada que pode ser a educação escolar.”
“A gente precisa reconhecer que a escola não é, em essência, nem boa, nem ruim. A escola que temos é a escola real. E a escola real é problemática. Estas críticas precisam ser enfrentadas não com a exclusão da escola, e sim com sua transformação”
“A qualidade da educação, na grande maioria das pesquisas, tem a ver principalmente com qualidade relacional, técnica e profissional dos professores. Ser professor exige estudo e formação, é uma categoria profissional. Sabemos que ter professores mal formados significa impactos negativos para os processos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, portanto não podemos ter nenhuma política que induza que pessoas não formadas em pedagogia ou com licenciaturas específicas, sem um sistema público de acompanhamento e formação continuada, que só é possível dentro da escola, venham a assumir a função da docência, que é profissional.”
Luciana Alves – “É um debate delicado, porque também há famílias muito bem formadas que veem na escola o oposto: a escola como instituição que vai diminuir o potencial das crianças – por causa de limitações curriculares e orçamentárias – e preferem educar seus filhos sozinhas. Embora talvez estas famílias deem conta da construção de um conhecimento com bases científica e filosófica, possivelmente elas não terão a outra parte, que é esta necessidade de se relacionar com as diferenças numa instituição que não é regida pelo afeto familiar, mas por regras sociais isentas destas paixões familiares.”
Os problemas que as escolas apresentam devem estar no centro da discussão. Nós, como sociedade, precisamos defender a revisão do currículo escolar e a proposta pedagógica, o investimento em infraestrutura das escolas, a formação docente qualificada, aspectos da avaliação, entre outros. Devemos exigir uma educação para todos, libertadora, que respeite as diferenças. Uma escola capaz de trabalhar uma proposta político-pedagógica alicerçada a uma pedagogia crítica, capaz de desafiar o educando a pensar criticamente a realidade social, política e histórica.
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O homeschooling como política pública pode impactar a verba destinada à educação básica?
Raquel Franzim – “No Brasil, faltam estudos isentos sobre os impactos no desenvolvimento e educação das crianças que estudam em regime domiciliar. A mídia comunica casos individuais e específicos de pessoas que estudaram na modalidade domiciliar e que têm acesso ao ensino superior. Estes precisam ser reconhecidos, contudo não podem ser base de discussão de política pública em educação. A partir do momento que uma lei é regulamentada, Ministério da Educação e secretarias de educação terão de supervisionar e acompanhar essas famílias que adotam a educação domiciliar – isso tudo gera ônus ao Estado. De onde virão os recursos, não só financeiros mas operacionais, se passamos por uma diminuição brusca de investimento destinado à educação?”
Ilana Katz – “Se as crianças e jovens não vão usar a escola, com que argumentos vamos reivindicar o já tão escasso investimento em educação? Quando a escola é desinvestida, a corda estoura primeiro do lado de quem precisa mais que o Estado atue na defesa de seus direitos e na construção de equidades para possibilitar o acesso a direitos civis. Essas são as populações vulnerabilizadas, negligenciadas e que sofrem por não acessarem direitos que deveriam estar garantidos.”
“Precisamos de programas e políticas que incentivem a busca ativa de crianças e jovens que estejam fora da escola e que possam também fazer da escola um lugar acessível, saudável e viável para todos”
Será preciso investimento público para criar um sistema de acompanhamento das famílias do ensino domiciliar. O que está em discussão no momento é de onde sairão estes recursos: possivelmente do mesmo fundo destinado à educação básica, que vem sofrendo muitos cortes nos últimos anos, prejudicando ainda mais a qualidade do ensino público.
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Por que a educação domiciliar pode aumentar as desigualdades educacionais no Brasil?
Luciana Alves – “Com a pandemia, as famílias ficaram responsáveis por regular a educação dos filhos, desde os equipamentos utilizados até a sua mediação/interação. As famílias com menos condições, seja financeiramente ou com baixa escolarização, não deram conta e não têm que dar, porque isso não é responsabilidade só da família, mas da sociedade. Se as famílias que estão reivindicando o homeschooling não tiverem um preparo adequado, teremos uma geração inteira de pessoas com defasagens enormes em termos de construção de conhecimento e de habilidades de trato social. E a gente sabe quem são estas famílias: são as famílias pobres e as famílias negras.”
Ilana Katz – “A produção de desigualdades tem efeito direto sobre toda a sociedade, e mesmo aqueles que supostamente poderiam ter uma escola de excelência, apesar do desinvestimento estatal na educação, terão de viver em um espaço público regulado pela existência das desigualdades e das negligências. Como diz Roberta Estrela Dalva: ‘Se a paz não for para todos, não será para ninguém.’”
Como é possível pensar a implementação de uma política pública de ensino domiciliar, considerando a diversidade brasileira e o cenário de desigualdades em que vivemos? A maioria das famílias brasileiras passa por jornada exaustiva de trabalho, instabilidade financeira e até situação de fome. É na escola que essas crianças brasileiras encontram oportunidade de convívio com outras crianças, acolhimento, segurança alimentar e proteção contra possíveis violações ou violências.
A escola traz o senso de pertencimento, de possibilidades, de encontros
Cada um de nós é único. Então, como a diversidade faz parte do ser humano, a escola é um espaço não só de convivência com essas diferenças, mas também um lugar para pensar criticamente a prática educadora. Para garantir que a educação esteja realmente alinhada aos interesses e às necessidades de aprendizagem dos estudantes, é preciso garantir a possibilidade de fazer junto.
“Fico me perguntando que contrapé é esse que estamos encenando para considerar, a despeito de toda a história da humanidade, que a vida segregada construiria qualquer tipo de qualidade para nós? Se ainda não aprendemos que a segregação é a mais radical violência que o humano pode produzir – porque isso culmina com a decisão pelo valor da vida dos outros – precisamos voltar rápido pra escola.” – Ilana Katz
Em resumo, o direito à escola é um direito da criança e do adolescente, previsto na Constituição Federal. Não é uma discussão exclusiva de liberdade individual ou de escolha das famílias.