“Não tem como falar de moda brasileira sem considerar o agronegócio, especialmente devido ao uso de matérias-primas”, diz Airon Martin, da Misci
Nascido e criado em Sinop, no Mato Grosso, Airon Martin, estilista da marca brasileira Misci, viu de perto os reflexos de uma economia baseada no agronegócio. Afinal, a cidade em que o profissional cresceu é um dos 100 municípios mais ricos do agronegócio brasileiro, na 40ª posição, de acordo com dados do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), divulgados em 2023.
Talvez seja por isso que Martin insista tanto em aproximar o tipo de produto que ele vende de um dos principais setores da economia brasileira. No ano passado, o agro nacional correspondeu a 23,8% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea).
“Não tem como falar de moda brasileira sem considerar o agronegócio, especialmente devido ao uso de matérias-primas. A cena da moda, reconhecida mundialmente, é produzida com recursos como o algodão orgânico e o algodão naturalmente tingido, que são opções mais sustentáveis. A responsabilidade pelo tingimento e pela qualidade desses produtos é do setor agropecuário”, afirma o estilista.
De acordo com o estilista, a infância no interior de Mato Grosso influenciou seu trabalho, desde a escolha de paletas de cores terrosas até os temas de suas coleções.
Um do temas já abordados pela Misci em um dos desfiles foi a gasolina, um dos principais combustíveis utilizados no dia a dia do brasileiro. Em 2023, 46 bilhões de litros de gasolina foram vendidos, uma alta de 6,3% em relação a 2022, mostram dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
A coleção rendeu uma bolsa no formato de um galão de gasolina, que foi um sucesso tanto nas redes sociais quanto nas vendas da Misci. O desafio, diz o estilista à EXAME, é mostrar um Brasil que vá além das commodities.
“Eu acredito no potencial do agronegócio brasileiro, mas enfrentamos uma grande dificuldade em mostrar um Brasil além do tradicional mercado de commodities. É justamente esse o papel da Misci: demonstrar que o Brasil pode exportar produtos acabados, e não apenas commodities”, diz Martin.
“Marca brasileira”, inclusive, é o slogan que toda peça da Misci tem. O objetivo, segundo Martin, é contar a história do Brasil por meio de suas capacidades que vão de um agronegócio pujante até um produto de luxo que utiliza a seda brasileira, que também é utilizada em produtos da francesa Hermes, a segunda marca mais valiosa do mundo, segundo o ranking BrandZ, avaliada em US$ 19,8 milhões.
“O mundo já conhece o Brasil como produtor de commodities, especialmente no setor agropecuário. No entanto, o Brasil do luxo ainda é pouco conhecido, apesar de termos a capacidade de produzir itens de alto padrão”, defende o estilista.
Para Martin, uma comunicação mais ampla entre o agronegócio e o setor têxtil pode alavancar ainda mais os setores. Segundo o estilista, tudo começa no agro brasileiro, que tem incentivos para ser impulsionado como um dos principais setores da economia do país.
O último levantamento do Relatório Setorial da Indústria Têxtil Brasileira mostra que a categoria que compreende fibras e filamentos apresentou crescimento de 2,8% no volume de produção entre 2021 e 2022.
“Reconheço a necessidade de se comunicar com os setores industriais e o agronegócio. Estamos constantemente engajados nesse diálogo, especialmente ao escolher o fio para nossos produtos dentro da indústria. Acredito que há um amadurecimento necessário sobre a integração entre diferentes setores industriais, como o agro e a moda. Ambos são partes fundamentais da indústria”, acredita o estilista.
Sustentabilidade no agro e na moda
A sustentabilidade é um tema inegociável na Misci, de Martin. Um exemplo é o couro vegano BeLeaf, desenvolvido em parceria com a empresa Nova Kaeru, especializada em couros sustentáveis. O produto apresenta características semelhantes ao couro tradicional, e é retirado de uma folha presente na natureza, a orelha-de-elefante.
“É uma planta de beira de rio e matas. Entre as técnicas agrícolas que testamos, sobressaiu-se a agricultura regenerativa. Apostamos na plantação entre bananeiras, mamões e árvores nativas”, diz Eduardo Filgueira, sócio-diretor da Nova Kaeru e um dos parceiros na empreitada sustentável da Misci.
A agricultura regenerativa envolve projetos que desenvolvem sistemas de produção integrados focados na redução dos efeitos das mudanças climáticas, de acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Junto com a empresa de Filgueira, Martin está desenvolvendo uma nova versão para o próximo desfile de um biocouro, que é feito com o caule da BeLeaf, material que já foi utilizado nos últimos desfiles da Misci.
“É crucial reconhecer e destacar os nomes dos cientistas envolvidos, como o Filgueira, que estão por trás dessas inovações. O biocouro feito com caule da orelha-de-elefante tem se mostrado bastante promissor […] Acredito que este material tem grande potencial para os próximos anos”, diz Martin.
Na visão do estilista, um melhor arranjo entre os setores têxtil e agropecuário pode beneficiar a cadeia produtiva de ambos, além de trazer para perto agentes econômicos que pouco se dialogam.
“O setor agropecuário, por exemplo, poderia se beneficiar enormemente ao reconhecer a importância da moda, já que esta última determina os tipos de fios e materiais que serão utilizados. Uma melhor compreensão e colaboração entre esses setores poderiam potencializar os resultados para todos”, finaliza.
Se depender de Martin, o agro também pode ser fashion — e claro, sustentável.
Fonte: Exame
Repridução Radar Sustentável