Antropóloga e cientista social Inara Nascimento diz que alianças para enfrentar a matança são urgentes; segundo ela, PL 490, aprovado por comissão da Câmara após forte repressão policial em Brasília, também coloca em risco a soberania alimentar nos territórios
A pandemia de Covid-19 escancarou um cenário já existente de desigualdades, de racismo e de violações de direitos diversos, incluindo do direito humano à alimentação. A avaliação é da cientista social e mestre em Antropologia Social Inara do Nascimento Tavares. Durante live da página História Indígena Hoje (HIH), realizada em parceria com De Olho nos Ruralistas, na noite da última quinta-feira (24), a professora, que é da etnia Sateré-Mawé, lembrou que os povos originários estão em luta constante. O que esse “desgoverno” fez foi transformar o genocídio em projeto e encontrar eco.
“Para nós, indígenas, o genocídio não é novidade, mas agora ele se estende à população brasileira”, afirma. Há três dias, policiais e seguranças do Congresso e a polícia reprimiram, com violência, uma manifestação pacífica de representantes de várias etnias. Eles protestavam contra o Projeto de Lei nº 490/2007, que institui o Marco Temporal, uma artimanha para não regularizar terras indígenas. A proposta passou pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara.
“São os nossos corpos que estão em Brasília nesse enfrentamento direto”, diz Inara, em referência ao Acampamento Levante pela Terra, instalado há três semanas em frente do Teatro Nacional. “O governo consegue ser mais perigoso que o vírus”, completa. “O projeto de genocídio é explícito, afeta a todos e, por isso, nossos enfrentamentos têm de ser múltiplos também”.
Mais de 507 mil pessoas já morreram em decorrência da Covid-19 e da necropolítica de Jair Bolsonaro no país desde março de 2020; dessas, ao menos 1.126 são indígenas, conforme dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Muitas eram verdadeiras bibliotecas de conhecimento tradicional”, lamenta Laura Furquim, uma das coordenadoras da HIH.
Enquanto estado falha, iniciativas solidárias garantem comida na mesa
Membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e integrante da Marcha das Mulheres Indígenas, Inara Nascimento falou na live sobre a importância da memória e da ancestralidade, dos afetos, na garantia da soberania alimentar. “A ideia de saúde integral faz sentido para os nossos corpos e territórios porque passa pela alimentação”, explica. “A alimentação é um processo de construção da saúde, de construção dos nossos corpos”.
Por essa razão que, de acordo com ela, a aprovação do PL 490 coloca em risco a soberania alimentar. “Violações aos nossos territórios são violações diretas aos nossos corpos e são violações diretas às nossas outras formas de viver, que incluem nossa espiritualidade, nossas práticas, nossa cultura”, defende. Inara leciona no curso de Gestão em Saúde Coletiva Indígena do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, da Universidade Federal de Roraima (UFRR)
O conceito de soberania alimentar amplifica a ideia de segurança alimentar, que está presente na Constituição Federal apenas desde 2010. Ele implica nas decisões dos territórios sobre suas políticas agrícolas, por exemplo. “Os povos decidem como se alimentar, o que produzir e o que plantar”, conta a antropóloga. A meta é, no futuro, assegurar que as cestas básicas, assim como as merendas ofertadas nas escolas, contemplem a cultura dos diferentes povos.
A conjuntura atual, porém, é de risco, inclusive no que diz respeito à fome. “Hoje são as iniciativas solidárias que garantem comida na mesa”, afirma a cientista social. “O Estado, um Estado genocida, se retira”, reforça. “Se a gente não morre de vírus, sem vacina, morre de fome”. Na avaliação dela, uma política pública que entenda a alimentação como um direito humano certamente enfrentaria esse cenário de outro modo.
Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), responsável por formular as políticas sobre o tema. E, em setembro de 2019, conseguiu mobilizar sua base para vetar a proposta que recriava o órgão. “Uma das primeiras medidas de violação foi desmobilizar a participação política”, relembra Inara. “Mas os ativismos se fortaleceram e estão aí enfrentando a pandemia”.
A Conferência Popular Soberania e Segurança Alimentar, por exemplo, é fruto da mobilização da sociedade civil para enfrentar a fome e esse desmonte das políticas públicas.
Pesquisadora teme aumento da pressão nos territórios
Questionada sobre os impactos específicos do agronegócio na soberania alimentar, Inara Nascimento citou a pressão por parte de grandes proprietários em cima dos territórios indígenas, principalmente no Norte do país. “Do sul do Pará até Roraima a gente tem uma situação muito particular, envolvendo não só indígenas, como também reservas extrativistas e territórios quilombolas”, destaca. “Muitas políticas públicas estaduais e municipais entendem a agricultura como um projeto mecanizado, como monocultura, como única forma de produzir e vender o alimento”.
Segundo ela, há políticas públicas que incentivam claramente a monocultura para garantia de vendas e recursos. “Você cria toda uma lógica para inclusive convencer o produtor”, relata. A região citada por ela é onde há a maior quantidade de terras demarcadas e homologadas. “O PL 490 não é só debate do marco temporal”, alerta. “É a abertura de terra indígena para todo tipo de expropriação, inclusive de arrendamentos ligados a essa produção de monocultura”.
Em Roraima, Inara menciona os problemas decorrentes do garimpo. “Entendo que esse processo em relação ao agronegócio vai criando estratégias que se acionam com agentes estaduais e municipais”. São processos, de acordo com a antropóloga, difíceis de combater. “Você imagina que o agro é pop, com grande mecanização, mas o agro começa lá no NPK”, diz, sobre o tipo de fertilizante, nocivo ao ambiente.
“Começa a plantar a sementinha de que aquilo é adubo químico, correção do solo, de que ajuda a produção a ser melhor”, exemplifica. “A ideia desse modo de produção aparece em coisas muito pequenas, como uma sugestão ali da casa que vende produtos agrícolas, e a gente perde a dimensão”.
Na avaliação dela, o agronegócio é, além de um sistema, um pensamento. “E esse pensamento se reproduz em práticas de produção de alimentos que movem esses lugares”. As monoculturas, de acordo com a pesquisadora, não são só dos territórios. São dos pensamentos e dos saberes.
Página traz reflexões sobre afetos envolvendo a alimentação indígena
A antropóloga mantém uma página no Instagram para falar sobre o tema. Na “Desde o Norte” (@desdeonorte), ela compartilha e reflete sobre os afetos, as memórias, as políticas e as práticas da alimentação tradicional, todas interligadas e manifestas em uma cuia de açaí, em uma caldeirada de tambaqui, em uma boa banana assada.
A gente constrói nossa alimentação pelos afetos e, nos afetos, convoca as pessoas a se engajarem nas nossas lutas. É a memória afetiva de um peixe, de uma farinha, de um bolo de milho, de um mungunzá, um pé de moleque que vai fazer as pessoas acionarem o afeto primeiramente. E aí a gente pergunta: de onde esse alimento vem? De que território ele fala? Do que é feito?
A pesquisadora citou estudos segundo os quais cada brasileiro consome anualmente até 7 litros de agrotóxicos. “O que isso significa nos nossos corpos, na nossa forma de viver, na nossa saúde?”, questiona. “O convite para a luta é feito constantemente, toda vez que a gente sugere colocar uma comida boa, uma comida de verdade na mesa”.
Fonte: De Olho nos Ruralistas