“No mundão, antes de ser preso, eu nem sabia direito o que era xadrez. Não fazia a menor ideia de como jogar nem do movimento das peças”, conta Pedro*, de 17 anos. Quando foi detido pela primeira vez, ele trabalhava no tráfico de drogas em um bairro pobre de São Paulo.
Internado na Fundação Casa, órgão que aplica medidas socioeducativas a menores infratores, Pedro conheceu um funcionário que abriu sua cabeça para outro “mundão”, o tabuleiro povoado por peões, cavalos, torres, bispos, rei e rainha.
Ele é um dos 1.785 adolescentes que atualmente jogam xadrez em um programa de práticas esportivas da fundação — também há outras modalidades, como futebol, vôlei e basquete. No total, a entidade atende hoje 4.961 adolescentes, internados ou cumprindo outras medidas socioeducativas.
Neste mês, cerca de 120 jovens participaram de um campeonato estadual entre os internos — realizado pela internet, por conta da pandemia de covid-19.
Pedro chegou na sexta colocação, e hoje joga xadrez por duas horas diárias. Mas seu começo no tabuleiro não foi fácil, conta. “Não ganhei nenhum jogo, perdia todos. Mas me interessei bastante, e resolvi continuar tentando”.
Ele saiu de sua primeira internação sem vencer uma partida sequer. Voltou para seu bairro e para a mesma vida de antes. Chegou a competir com um tio, e, ainda assim, não foi bem.
Pedro conta que a mãe, diarista, nunca deixou faltar o essencial em casa, mas as condições da família não permitiam que os desejos dos filhos fossem satisfeitos. Pedro queria mais, como muitos adolescentes da sua idade. E decidiu entrar para o tráfico.
“Eu traficava porque queria comprar várias coisas que eu não tinha, e minha mãe não podia pagar: tênis, roupas, boné, maconha.”, conta ele, que abandonou a escola no 6º ano do ensino fundamental.
Pedro vendeu drogas na rua, mas logo foi alçado a gerente do ponto. “Cheguei a ganhar R$ 2 mil por dia, mais do que minha mãe recebia no mês inteiro. Às vezes eu gastava tudo no mesmo dia, comprando roupas, em festas, pagando bebida para meus amigos”, diz.
Tudo isso acabou quando ele foi novamente preso. De volta à Fundação Casa, reencontrou-se com o tabuleiro. Foi quando venceu sua primeira partida. “Fiquei observando os moleques jogarem, e vi o que eu precisava fazer. Quando ganhei, foi bem conquistado. Fiquei muito feliz. Hoje sou bom, um dos melhores da casa. Até ensino quando um moleque novo quer aprender a jogar”, diz.
Quando sair, Pedro pensa em trabalhar no comércio, como o pai. Depois, quer terminar o ensino médio e cursar engenharia civil. “O xadrez me deu isso, aprendi a raciocinar melhor, a analisar minha situação. Hoje quero sair desse mundão, parar de fazer coisa errada, quero constituir família, ser uma pessoa normal”, diz.
Xadrez levado a sério
O campeão deste ano foi Thiago*, de 16 anos, que, entre idas e vindas, já passou dois anos da sua vida na Fundação Casa. “Comecei a furtar no mercado”, conta o menino, cuja família vive em uma favela de São Paulo.
De pequenos furtos de comida, o jovem passou a roubar bens de maior valor. “Você conhece umas pessoas, que te chamam pra fazer uma coisa errada, e você vai indo no embalo, sem pensar direito. Eu roubava mesmo era para conseguir coisas imediatas, principalmente roupas. Uma vez eu queria um (tênis) Mizuno que custava R$ 800, e eu não tinha esse dinheiro.”
Para Thiago, o xadrez apareceu antes de ser preso — aprendeu a jogar em uma ONG que atua com crianças pobres em sua comunidade. “Mas eu só sabia mesmo movimentar as peças. Não tinha estratégia, não sabia me defender no jogo. Isso aprendi aqui, jogando com outros moleques. Hoje, já começo a partida com uma ideia: ‘vou iniciar com o peão na frente do rei, depois mexo o cavalo pra dar uma proteção maior, e assim vai…”
No campeonato, ele venceu 10 adversários até chegar à final. “Fiquei muito nervoso, sob pressão. Eu queria muito ganhar. Mas perdi a rainha, perdi um monte de peças, achei que iria perder. Mas então consegui a rainha do outro moleque, e dei xeque-mate. Nem sei dizer o que passou pela cabeça. Só fiquei muito feliz”, conta.
Mesmo campeão no tabuleiro, Thiago pensa em seguir carreira em outro campo: quer ser jogador de futebol profissional. “O xadrez foi muito bom para mim, porque aprendi a levar a sério algo que eu gosto. Nunca levei o futebol muito a sério. Quando eu sair daqui, vou correr atrás de realizar meu sonho.”
‘Eles sabem que podem ser presos’
Além da escola formal, atividades extracurriculares fazem parte da vida de todo adolescente no sistema socioeducativo, como o da Fundação Casa de São Paulo.
“Todos os adolescentes praticam semanalmente três atividades esportivas”, explica Carlos Alberto Robles, gerente de educação física da Fundação Casa. “O xadrez surgiu de uma parceria que fizemos com a federação paulista de xadrez, anos atrás. Muitos adolescentes gostam de jogar, porque é uma atividade de raciocínio, complexa.”
Menores de 18 anos podem ficar internados no máximo três anos. O tempo exato é determinado pela gravidade do ato infracional, a partir de uma análise feita por agentes, psicólogos, promotores e juízes.
Das 5 mil pessoas cumprindo medidas socioeducativas no Estado de São Paulo, 49% cometeram infrações relacionadas ao tráfico de drogas — roubos representam 37%; furtos 3% e homicídios, 2,6%. Do total, 69% dos adolescentes são negros (pardos + pretos) e 30%, brancos.
Para Fernando Henrique de Freitas Simões, promotor de Justiça da Infância e Juventude de São Paulo, pobreza e a vulnerabilidade explicam em parte a ligação entre os adolescentes e o crime. “Nossa experiência mostra que a grande maioria dos jovens é bastante pobre, de bairros periféricos. Dentro das próprias comunidades, que já são vulneráveis, eles são pessoas ainda mais vulneráveis que a média”, diz.
“Em geral, eles vivem em famílias monoparentais, enfrentam situações de violência doméstica, às vezes com vários irmãos. Muitos abandonaram a escola ou estão atrasados, pouco sabem ler e escrever. Costumo dizer que, quando esses problemas não são tratados até os 15 anos, esses jovens aparecem na Fundação Casa”, explica.
Segundo o promotor, roubos e o tráfico de drogas surgem como alternativa para os adolescentes conseguirem dinheiro mais facilmente.
“Algumas pessoas não concordam, mas eu acho que a decisão de entrar no crime é uma decisão racional para esses jovens, não é algo que acontece do nada. Eles ganham dinheiro, mais que os próprios pais, mas sabem que há vários riscos envolvidos: violência, confrontos com a polícia, e prisão. Eles sabem disso, sabem que podem ser presos. Em casos de reincidência, há adolescentes que passam três anos internados”, diz.
‘O xadrez é como a vida’
Com duas passagens pela Fundação Casa, Rodrigo*, de 17 anos, vai completar três internado. Na primeira, ficou mais de dois anos depois de se envolver em um assalto.
No campeonato de xadrez deste ano, ele terminou na terceira colocação.
“Eu gostava de jogar dama, e aprendi xadrez com um funcionário da unidade. No campeonato, me desesperei várias vezes porque cometi muitos erros. Mas fui avançando. Nunca imaginei onde chegaria”, conta.
Rodrigo foi criado apenas pela mãe.
Quando o jovem tinha 14 anos, foi preso cometendo um roubo junto com um parente maior de idade.
Depois do primeiro período de internação, Rodrigo voltou para casa e para o crime, dessa vez como traficante de drogas. Aceitou a tarefa de ser gerente de um ponto de venda em uma comunidade. Conta que ganhava R$ 3 mil por semana, mas isso durou só 15 dias, pois logo foi preso.
“Comecei a namorar uma menina, e a gente foi morar junto. Eu precisava comprar coisas para casa. Então, comecei no tráfico e fui progredindo, mas, se você for ver, foi uma regressão. Fiz muita coisa errada sem pensar direito, no impulso”, conta.
Hoje, Rodrigo diz que não se enxerga mais no crime: sonha em terminar o ensino médio (está no 1º ano) e quer estudar medicina.
Ele explica que jogar xadrez — o movimento calculado das peças — o ajudou a refletir sobre suas ações até aqui. “O xadrez é como a vida: você pensa sobre o que vai fazer agora para ter um bom resultado depois. Aprendi a pensar antes de agir.”
- O Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe a divulgação de dados pessoais que possam identificar menores infratores. Por isso, os nomes dos jovens citados nesta reportagem são fictícios.
FONTE: BBC Brasil | Por Leandro Machado | São Paulo